sexta-feira, 29 de outubro de 2010

E um dia virá...

Sim, um dia virá em mim a capacidade tão avermelhada e afirmativa quanto clara e suave; Um dia, o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar; Sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio. Erguerei dentro de mim o que sou um dia. A um gesto meu, minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e, quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo meu futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! Não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: Sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.

Clarice Lispector in Perto do Coração Selvagem

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